sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Aborto. Se não concorda, respeite.

Ora bem, eu não vou debitar os argumentos ilegíveis no panfleto, até porque não são meus. De resto, há uns tipos na baixa de Coimbra que passaram um bom bocado a tentar convercer-me de algo que eu já estava convencida.

Sim, pois, e tal, o aborto é ilegal (mentira, ele está regulado na lei). Sim, pois, e tal, a lei não é suficiente e promove indirectamente uma série de condutas clandestinas de maior ou menor risco, higiéne e dignidade (mmm... haverá mesmo alguém que faça um aborto e que se sinta bem - dignificada - com o que está a fazer?) e como é óbvio a existência de uma lei menos restritiva não implica, de modo algum, a obrigação de abortar nem o aumento do número de abortos (nem que seja apenas porque agora não temos meios seguros de os quantificar).

O objectivo duma maior flexibilidade legislativa seria, certamente, aborta quem quer, mas calma. Haveria que garantir que quem quer abortar de facto quer e não está a ser coagida por outrém a fazê-lo, além de que se encontra mentalmente capacitada para tomar essa decisão, ou seja, a mulher deve manifestar consciência das consequências hipotéticas tanto de ter como de não ter a criança e, se assim o entender, receber apoio terapêutico (por exemplo, há quem gostasse muito de ter filhos, mas não os possa sustentar). Até porque não é o procedimento médico em si (desde que devidamente assistido) que tem consequências: são os "e se..." e os "e se..." fazem mais danos do que os que qualquer procedimento físico poderia causar.

Por outro lado, já ouvi não sei onde que durante a gestação o corpo não pertence à mulher, mas torna-se um "ninho" para a futura criança. Gente, não ver o próprio corpo como sendo seu é um sintoma tão grave que a simples presença é suficiente para preencher o critério A do diagnóstico da Esquizofrenia.

O corpo de cada uma a cada uma pertence.

Agora o mais importante, prestem atenção:


O aborto é um direito da criança.

O aborto, tal como está regulamentado à data, viola de forma grave o direito da criança a ser amada e protegida, vestida e alimentada, tratada com dignidade. Uma criança não é uma peça de roupa que se compra porque é gira, uma criança dá trabalho, é uma responsabilidade, como tal, ou há o comprometimento de a ter e de a cuidar, a percepção e convicção de que a criança é uma pessoa que vale por si mesma e não um apêndice narcísico, ou tê-la é ser terrivelmente cruel para com ela. É expô-la ao mau-trato, ao abuso, à vida em lares de acolhimento, ao capricho dos adultos. Até as crianças que são adoptadas e cuidadas por familias competentes estão em risco, a lei não protege de forma suficientemente eficaz as familias de afecto.

As crianças não devem nunca pagar pela estupidez de adultos que não têm noção do que é o estabelecimento de uma relação de vinculação primária nem das condições necessárias para o fazerem - não falo só dos pais, mas, sobretudo, dos legisladores.

No nosso país, as leis são feitas por homens, homens que são engenheiros, filósofos, advogados, economistas e outras abstracções acabadas em -istas, homens que podem ter uma noção de ética clara (ahem...) e correcta relativamente ao valor da vida humana, mas que não compreendem propriamente que antes de exigirem que se preze uma vida que ainda não existe por si mesma, é necessário criar condições facilitadores para as mães e os pais possam exercer o seu papel de forma adequada e apoiar convenientemente a promoção da sua autonomia em todos os aspectos.


Antes de nos preocuparmos com a incubação das crianças, temos de nos preocupar com a incubação dos pais.


A restrição da prática do aborto, tal como se encontra hoje legislada, não permite a opção legal de abortar salvo em caso de violação, perigo para a saúde da mulher ou perigo para a saúde mental da mulher. Estas crianças cujo aborto já se permite seriam, de alguma forma, menos crianças do que as que seriam abortadas por outros motivos?
Certamente, mesmo com a hipotética possibilidade de escolha no início de qualquer gravidez, os nossos lares, orfanatos, ninhos e/ou refúgios continuariam, tal como agora, a estar repletos de crianças que anseiam por estabelecer uma relação primária com qualquer adulto que encontrem (nem falo dos abusos).

Se a política natalista do nosso governo passa por fechar Maternidades (e nós bem sabemos que as têm fechado... como se as que restam tivessem capacidade de lidar com todas as gravidezes!), porque é que não pode passar por uma nova regulamentação da prática do aborto por forma a permitir-la num leque mais abragente de situações?

A prevenção da gravidez não é apenas uma questão de evitar o sexo, nem de presença/ausência de contracepção durante o sexo, até porque nenhum método contraceptivo é 100% eficaz. Muito menos uma questão religiosa. Mais do que isso, o aborto é uma questão de direito a tomar uma decisão séria e de último recurso, que ninguém toma de ânimo leve e que implica a noção de que, de facto, o direito à vida é inviolável.


Mas o direito à vida não é, de forma alguma,
o mesmo que o direito a estar biologicamente vivo.
A vida é muito mais do que biologia.

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